Comportamento

As baratas da tecnologia e da burocracia corporativa

As baratas da tecnologia e da burocracia corporativa

“A burocracia é a maneira meticulosa de transformar o possível em impossível” –

Friedrich Hayek

A obra de Franz Kafka é frequentemente interpretada como uma representação da condição humana em um mundo complexo e muitas vezes absurdo, envolvendo alienação, burocracia e a impotência do indivíduo diante de sistemas opressivos. Suas histórias convidam o leitor a refletir sobre questões existenciais e sociais.

Kafka frequentemente critica a burocracia e a complexidade de instituições governamentais e sociais, mostrando como elas podem ser desumanas e opressivas. Seus personagens se sentem alienados da sociedade e lutam para se encaixar ou se comunicar com os outros, levando-os a um sentimento de isolamento, desespero e angústia.

Metamorfose, seu trabalho mais conhecido, retrata um protagonista que acorda transformado em uma barata, explorando a relação opressora e desumana da sociedade, que na realidade vê o indivíduo como um inseto.

A burocracia cotidiana se transformou num sistema que, ao invés de servir, existe para proteger o Estado e as empresas de seus integrantes. A função da burocracia atual é fazer você invisível, irrelevante e dificultar acesso aos tomadores de decisão.

A frase da moda no mundo corporativo é “respeitar os processos”, entendidos estes como normas internas que lhes são impostas para que alguém com quem você não tem relação decida se você é apto a dialogar com a companhia. Somente após este veredito invisível, lhe é consentido se relacionar com ela. Hoje é impossível ser contratado para prestar serviço numa grande empresa, senão através de uma pessoa jurídica, pois o compliance não permite a contratação de pessoa física. Jamais entenderei isso.

Estes burocratas residentes em um castelo inalcançável extirpam a flexibilidade das operações e a capacidade de inovação, sem levar em consideração as individualidades. Redefinem a cultura empresarial, aumentam os custos, prejudicam os lucros e oprimem seus integrantes, cujo principal temor é perder o emprego, fazendo do funcionário um inseto do mudo.

A tecnologia é vendida como combatente da burocracia, através de ferramentas e aplicativos que deveriam simplificar a vida. Nada mais errado no nosso estágio de desenvolvimento.

Vejamos alguns exemplos de profecias de Kafka na burocracia do nosso cotidiano.

Vale lembrar que o mundo de Kafka é organizado e sistêmico, mas que você não tem com quem falar, e que ninguém sabe nada. Logo, ninguém tem como oferecer sentido para nada.

O sistema bancário é uma das áreas mais kafkianas do mundo contemporâneo. A interação pessoal é cada vez mais ausente. Ninguém liga para o indivíduo, a não ser para seu dinheiro. Tudo se resume a um universo de senhas e aplicativos. Se sua transação não funcionar, não há com quem falar. O serviço bancário simples já era. Como disse Bill Gates: “no mundo atual, banking (serviço de transação financeira) é essencial; os bancos, não”.

As empresas de infraestrutura como luz, gás, água, telefone, internet são outro nicho kafkiano. Você fica sem luz, sem água, sem internet por dias e não tem com quem falar. Se algum erro acontece, você clama no deserto à espera que um rato digital de Kafka lhe atenda.

Nenhum exemplo mais atual do que a falta de energia em São Paulo na semana passada, causada por fortes ventos. Profissionais mal treinados não sabiam dar explicações convincentes ou prognósticos críveis. Essas empresas prometem um paraíso digital que na realidade não existe. O aplicativo nunca é tão eficiente, são inúmeros passos, senhas, códigos que expiram. E ao fim, a chance de você ter que falar com um daqueles atendentes inúteis é enorme.

Outro segmento kafkiano é o mundo das companhias aéreas. Não se consegue comprar uma passagem aérea sem o uso da internet. O programa de milhagem é uma mentira. No aeroporto, qualquer intercorrência fará o cliente ficar como uma barata correndo de um lado para outro sem saber o que fazer. Dane-se sua conexão e seu compromisso.

Mesmo nas operações comuns a tecnologia dificulta tudo. Já não se consegue mais fazer transações simples como pagar e receber. Outro dia, numa farmácia, me deparei com uma situação surreal. Com o dinheiro contado na mão – sem precisar, portanto, de troco ou balinhas que substituam as moedas –, me vi tendo que responder a 11 perguntas para compra de um simples xampu. Quer CPF na nota? Dizia a pobre funcionária, obrigada a este ritual ridículo. Não, disse eu. E o martírio continuou. Débito ou crédito? Nota fiscal paulista? Tem cadastro na loja? Quer fazer? Qual seu nome? Qual seu CPF? É cliente da Porto Seguro? E por aí foi, numa miríade de perguntas para uma simples compra de um xampu em dinheiro vivo sem necessidade de troco.

Veja a que ponto chegamos. Num futuro próximo, imagino alguém indo à padaria para comprar 5 pãezinhos. Este indivíduo terá que constituir uma pessoa jurídica, emitir ações na bolsa de valores e preencher requisitos do compliance da padaria.

Franz Kafka, nascido em 1883, escreveu A Metamorfose em 1912. A obra só foi publicada em 1915. Nada mais atual.

About Author

Maurício Ferro

O que o futebol, vinhos, direito, política e economia têm em comum? Muito mais do que você imagina. E ao contrário do que prega o ditado popular, podem e devem ser debatidos e analisados sim. Sejam bem-vindos ao site de Maurício Ferro, um canal para se criar e trocar pensamentos e opiniões. Maurício Ferro é advogado, formado pela PUC do Rio de Janeiro, com mestrado e especializações realizadas em universidades como a London School e University of London. Cursou OPM na Harvard Business School. Autor de trabalhos publicados nas áreas comercial e de mercado de capitais, e com atuação no Conselho de Administração de grandes empresas, fundamentou sua carreira jurídica e executiva com foco do Direito Empresarial. Mas sua paixão vai além do mundo corporativo. Flamenguista apaixonado, Mauricio conhece os meandros do mundo profissional do futebol e de outros esportes. É sócio em empresas inovadoras como a 2Blive, uma startup global focada em soluções tecnológicas para suprir a carência no ensino, especialmente em áreas de grande necessidade como a África. Investe ainda na empresa Flow Kana, sediada na California, e voltada para a produção científica da Canabis para diversos fins, como medicinal, produção de roupas ou uso recreativo. A todos esses ingredientes, adicione ainda um profundo conhecimento sobre vinhos e os caminhos deliciosos da enologia. Essa é a receita do que vocês encontrarão por aqui.

1 Comment

  • Nossa triste realidade.

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