A expressão americana “walk the talk” é comumente utilizada no sentido de “fazer o que se fala” ou “agir conforme as próprias palavras”. Ela enfatiza a importância de se manterem consistentes o discurso e as ações de uma pessoa ou organização. É uma expressão que destaca a integridade e a credibilidade na execução de compromissos ou ideais – e cada vez mais um artigo de luxo por lá. No turbilhão de contradições que caracteriza a política externa dos Estados Unidos há um paradoxo inescapável que ecoa nos corredores do poder e ressoa pelo mundo afora: a hipocrisia soberana de uma nação que proclama a liberdade como mantra, enquanto sufoca a concorrência internacional e prende jornalistas que não revelam suas fontes; que defende a democracia com fervor retórico, enquanto semeia conflitos em terras distantes, subsidiando guerras e abatendo economias alheias.
Os EUA enfrentam uma crise de desigualdade econômica aguda, visível principalmente nas grandes cidades, onde a pobreza e o desemprego atingem níveis alarmantes. Segundo o World Population Review, em Detroit, por exemplo, cerca de 37.9% da população vive abaixo da linha da pobreza, e a taxa de desemprego é de 19.8% — mais de cinco vezes a taxa nacional. No contexto nacional, aproximadamente 37.9 milhões de americanos estavam em situação de pobreza em 2022, com a taxa de pobreza infantil mais que dobrando de acordo com a Medida Suplementar de Pobreza (SPM) (Census.gov).
Contrastando com esta realidade dura, o congresso dos EUA recentemente aprovou um pacote de ajuda de US$ 90 bilhões para as guerras da Ucrânia x Rússia e Hamas x Israel. Enquanto isso, internamente projetos críticos para revitalizar a economia e apoiar os mais necessitados estão paralisados. Essa escolha reflete o poderoso lobby da indústria de armas, que parece distorcer as prioridades nacionais a favor dos interesses de terceiros em detrimento da população. Esse não é um lobby recente, pois historicamente tem influenciado diversas outras intervenções militares americanas ao longo dos anos. Senão, vejamos: nos últimos 30 anos a quantidade de grandes conflitos armados que podemos recordar sem grandes pesquisas: Guerra do Golfo (1990-91), da Somália (1992-95), Bósnia (1995-96), Kosovo (1999), Afeganistão (2001), Iraque (desde 2003), Líbia (2011) e Síria (2014). Sem contar as duas mais recentes que citei acima.
A hipocrisia das políticas econômicas americanas é ainda mais evidenciada na recente ação contra o TikTok. Forçar a venda da empresa chinesa sob alegações de segurança nacional contradiz diretamente os princípios de livre mercado tão vigorosamente defendidos pelos Estados Unidos em arenas internacionais. Esta é uma clara demonstração de protecionismo que mascara uma tentativa de conter o avanço tecnológico e econômico da potência estrangeira, que é hoje seu principal rival. Mais que uma medida de segurança, essa política contra o TikTok revela-se uma manobra protecionista disfarçada, que cria pretextos para uma luta econômica e ideológica contra a China, a grande nêmesis econômica dos Estados Unidos. Autoproclamados guardiões da liberdade de expressão e da preservação econômica dos seus cidadãos, os EUA parecem mais interessados em preservar seus próprios interesses, mesmo que isso signifique minar a prosperidade alheia. Enquanto clamam por um mercado global aberto e justo, fecham as portas para empresas estrangeiras que ameaçam sua hegemonia digital.
Por trás da retórica de liberdade e democracia, há uma máquina de guerra que devora recursos e vidas, exportando conflitos e instabilidade mundo afora. Os EUA subsidiam guerras internacionais, sacrificando não apenas a Europa, mas também qualquer vestígio de coerência moral. Enquanto investem bilhões em intervenções militares por procuração, os recursos que poderiam ser destinados à melhoria da qualidade de vida de seus próprios cidadãos são desviados para um ciclo interminável de destruição e reconstrução.
Enquanto isso, a economia americana se debate em desigualdade e precariedade, onde poucos prosperam às custas de muitos. Os ganhos da globalização são concentrados nas mãos de uma elite corporativa, enquanto a classe trabalhadora enfrenta empregos precários, salários estagnados e um futuro incerto. A promessa de uma vida melhor para todos se desvanece diante da realidade de um sistema que privilegia o lucro acima de tudo, mesmo que isso signifique sacrificar os próprios pilares que sustentam a democracia.
Nos Estados Unidos, a liberdade é um privilégio de poucos, a democracia é um jogo de interesses e a preservação econômica é uma fachada para a dominação global. Enquanto o mundo observa perplexo a hipocrisia desenfreada que permeia a política externa americana, cabe a nós questionar: quem são os verdadeiros beneficiários desse teatro de sombras? E até quando seremos reféns da retórica vazia de uma nação que prega a liberdade, mas pratica a opressão? O abismo entre os discursos e as práticas dos EUA não só compromete a integridade de suas políticas domésticas e internacionais, mas também deixa milhões de seus cidadãos em uma vulnerabilidade desnecessária. É uma ironia trágica que a nação, tão rica e poderosa, escolha financiar guerras distantes enquanto suas próprias cidades sofrem com a pobreza extrema e a infraestrutura decrescente. Tal situação exige uma reflexão crítica e urgente realocação de recursos e prioridades para atender às necessidades prementes de sua população e manter sua posição de liderança global de maneira justa e ética.
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Excelente artigo!