Se sangra, vende

“A minha dor é o eco da sua própria alegria”
Friedrich Nietzsche
Neste mês de março completam 10 anos da malfadada operação Lava Jato. Não coincidentemente, o judiciário se depara com o dilema de rever os acordos de leniência firmados pelas empresas por terem sido coagidas a assinarem um acordo assombrosamente desproporcional.
Veículos de comunicação decidiram celebrar a data e publicar reportagens diárias sobre o tema, resgatando depoimento de protagonistas do maior evento de corrupção e manipulação do judiciário brasileiro. A operação quebrou o país, mas gerou enormes ganhos financeiros aos veículos de comunicação.
À época, a cobertura midiática era constante e opressiva, sem nenhum respeito às balizes do bom jornalismo. As pessoas eram expostas e enxovalhadas publicamente. Os biltres de Curitiba humilhavam e debochavam de suas vítimas, até mesmo diante da morte de parentes. Tudo era transmitido instantaneamente, sem nenhum apego pelo sofrimento das pessoas e seus familiares, pois geravam enormes lucros aos veículos de comunicação.
No jornalismo, há dois brocados que dizem: “as más notícias vendem”, ou “se sangra, vende”. Estes slogans explicam por que o crime violento, a guerra, o terrorismo, os desastres naturais, o choro de crianças, a quebra de empresas são onipresentes nos noticiários televisivos. Assim, quanto mais morte, carne, sangue e desgraça estiverem estampados nas capas dos jornais ou nas telas das mídias digitais, mais os jornais conseguirão chamar a atenção dos consumidores, e, ao mesmo tempo, mais consumidores darão atenção aos jornais. Este ciclo vicioso não tem fim.
Isso nos leva a pensar, por que a mídia é tão ávida pela dor dos outros, a ponto de não se importar com nenhum sentimento de compaixão pela degradação das pessoas que ela mesma ajuda a proporcionar?
A explicação está nos números: quanto maior a dor de outrem, maior seu lucro.

Esta equação (lucro = dor + sofrimento alheio), pela qual o entretenimento deixa de ser o maior objetivo dos veículos de comunicação e é substituído pela notícia sangrenta, remonta à década de 60. Até o início desta década, os noticiários da TV eram deficitários, depois se tornaram máquinas de lucro.
O fato de os veículos de comunicação ganharem dinheiro com acontecimentos perturbadores é algo que raramente se discute. Mas é importante compreender a ligação entre notícias negativas e lucro para lançar luz sobre as forças que moldam o jornalismo contemporâneo.
O assassinato do presidente norte-americano John F. Kennedy há 60 anos oferece um estudo interessante sobre esta ligação do caos com o lucro jornalístico, pois fez os americanos recorrerem aos noticiários da TV.
Depois de um homem armado ter matado o presidente em Dallas em 22 de novembro de 1963, os noticiários televisivos ofereceram uma cobertura completa e ininterrupta, a um custo considerável para as redes de TV. Isso rendeu ao noticiário uma reputação de espírito público que durou décadas.
Durante a cobertura da tragédia, as redes de TV demonstraram sensibilidade e cancelaram os anúncios comerciais, passando a dedicar tempo integral à transmissão da história. A certa altura, 93% de todas as TVs dos EUA estavam sintonizadas na cobertura do tema.
Naquela época, o noticiário era o segmento líder em perdas, já entretenimento o líder em ganhos. Mais tarde, este fenômeno foi revertido com as enormes audiências dos noticiários televisivos.
Como, então, os noticiários da TV se tornaram uma máquina de fazer dinheiro?
A cobertura do assassinato de Kennedy, combinada com a expansão do tempo dos noticiários, aumentou significativamente o valor comercial de TV. Ao longo da década de 1960, o jornalismo de radiodifusão começou a amadurecer e se tornar o gênero de programação mais lucrativo da televisão americana, deixando o entretenimento em segundo plano.
As redes, no entanto, não divulgaram seus lucros e promoviam a ideia de que a cobertura da Guerra do Vietnã e dos assassinatos da década de1960 eram serviços de interesse público. Ocultavam receitas de publicidade da programação de notícias para garantir as renovações de licenças de transmissão e benesses com o fisco.
Em última análise, a década caótica, cacofônica e confusa de 1960 acabaria por promover o mundo midiático hipercomercial em que vivemos hoje. Perseguir histórias de investigação sensacionais, como Watergate e o escândalo de armas por reféns Irão-Contras, geraria mais audiência e mais receita com publicidade, e transformaria jornalistas em celebridades nacionais.
Desse modo, consolidou-se a ideia de que a desgraça alheia é um produto de extrema lucratividade, pois as más notícias vendem. É um truísmo da indústria dos meios de comunicação. Os noticiários transmitidos hoje, abundantes em desgraça, ratificam esta máxima.
O problema é que esta banalidade do mal está se transformando numa certa naturalização da cultura do mal, fazendo com que esta conduta maléfica seja tratada espontaneamente pela sociedade. Com isso, o ato vil vira padrão social.
Assim, qualquer semelhança com a Lava Jato no Brasil não é mera coincidência. Ao mesmo tempo em que enchia os cofres dos conglomerados de mídia, a cobertura contínua desta operação criminosa que fez pessoas sangrarem, quebrou setores econômicos produtivos e levou o país a grande desemprego, não sofria nenhum escrutínio crítico da grande mídia.
Por isso, estes 10 anos acabam sendo lembrados como um período sombrio da cobertura jornalística, pois nessa época imperou o sensacionalismo, o viés político, a falta de contexto e de pluralidade de fontes, o que levou a manipulação da opinião pública para um julgamento prévio do tema.
JFK não fazia ideia de que seu assassinato faria mudar o eixo da lucratividade dos veículos de comunicação.
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Parabéns.