A governança da autoproteção
“Consigo calcular a órbita dos corpos celestes, mas não a loucura das pessoas.”
Sir Isaac Newton, 1721
O mundo corporativo sempre foi criativo em criar ferramentas e modismos de governança que supostamente significam avanços de gestão, mas que servem para gerar receita para consultores e criar mais burocracia interna nas empresas. Nem tudo deve ser descartado — e reconheço que houve avanços de transparência na gestão das contas empresariais, mas o que me chama a atenção é o desvio de finalidade da gestão.
O objetivo precípuo de uma empresa de capital privado, numa economia capitalista, é a geração de valor para seus acionistas. Esta é a atividade fim da empresa, sem a qual sua existência não é sustentável. É claro que a empresa também tem uma função social, pois paga impostos, gera empregos, impacta o meio ambiente e atua localmente na sociedade em que está constituída – vide artigo Revisão dos Acordos de Leniência. Mas, este papel social não altera a atividade fim da empresa, qual seja, a obtenção de lucro e a geração de valor aos seus acionistas. Como se sabe, o lucro advém de uma simples equação matemática, onde a receita deve superar a despesa.
Pois bem, conforme as empresas foram se tornando mais complexas, foram sendo criadas ferramentas de gestão e modelos de controle da companhia. O curioso é que estas novas ferramentas aparecem geralmente em resposta a uma crise empresarial de grande impacto, e não por necessidade orgânica de gestão. Assim, depois do evento Watergate, aparece nos EUA o FCPA, cuja finalidade seria combater a corrupção de empresas norte-americanas no exterior, mas que hoje é sabidamente uma ferramenta de interferência política dos EUA, nos principais setores econômicos mundiais. Em resposta ao escândalo de contabilidade da Enron, foi sancionada a Lei Sarbanes- Oxley, cuja finalidade é o combate a fraudes financeiras de grandes organizações americanas. E assim em diante, com o surgimento do compliance, dos comitês de apoio ao conselho de administração, a figura do conselheiro independente dos conselhos de administração e, mais recentemente, a agenda ESG.
Estas ferramentas buscam, no seu conceito original, agregar algo sobre os processos da empresa, mas em realidade, pouco acrescentam à atividade fim da companhia.
Pelo contrário, são somente despesas, custo e, na maioria das vezes, entraves de gestão. Tornam as companhias pesadas, burocráticas e sem o dinamismo necessário para acompanhar a velocidade do mercado nos dias de hoje. São ferramentas defensivas, reativas e de pouco valor agregado ao core business da empresa. Nascem como uma “necessidade” do ambiente empresarial, travestida de um projeto pontual de diagnóstico e controle com atividade terceirizada e um gerente responsável. Este gerente, cooptado pela possibilidade de promoção, conclui pela necessidade de se internalizar o controle e transformar este projeto pontual num departamento sob sua liderança, com dezenas de funcionários sob seu comando e, agora, promovido a diretor. Daí em diante, este novo departamento de controle passa a se reportar diretamente ao conselho de administração, visando “maior transparência e independência”, que, por não ter o conhecimento necessário para gerir esta nova ferramenta, cria um comitê próprio de assessoramento. Portanto, o projeto pontual de controle terceirizado passou a ter centenas de funcionários para realizar uma função que não gera nenhum centavo de receita à companhia. O custo deste novo departamento nas grandes empresas supera tranquilamente as dezenas de milhões.
O mais curioso é que diante desta nova ferramenta criada subitamente pelo mercado aparecem incontáveis “especialistas” no tema com ar professoral a discorrer tranquilamente sobre um assunto que não existia no ano anterior. Uma tremenda contradição. Aqui há uma real oportunidade para inteligência artificial fazer uma limpa nesta antinomia.
O conselheiro independente do conselho de administração é outra figura curiosa no mundo corporativo atual.
Apregoado como uma voz isenta na administração e, portanto, livre de qualquer conflito de interesses, este conselheiro, na prática, quase nunca agrega alguma contribuição real às necessidades operacionais ou estratégicas da companhia. Sua atuação é geralmente pautada pela agenda protetiva, buscando se cercar de imunidade nas decisões do colegiado. Evita tomar riscos, não por desacordo ao mérito da decisão em pauta, mas para não se expor a contingências legais futuras. Portanto, não busca lealdade à companhia, mas a si mesmo. Já vi situações absurdas em que o conselheiro independente tem seu próprio advogado para assegurar proteção ao seu posicionamento no colegiado. Ora, se o individuo não está seguro de figurar como membro do conselho de administração de uma empresa, então que decline do cargo.
Aos poetastros de plantão, adianto logo que não estou defendendo o fim de controles na companhia. Advogo que haja transparência, mas não que se deleguem decisões a órgãos de controle. Nos dias atuais é comum ouvirmos que o “compliance não permite determinada operação, ou a contratação de certos indivíduos ou empresas”. Como assim o compliance não permite? Isto é falta de gestão.
Numa empresa, quem toma as decisões é a diretoria, o conselho de administração ou a assembleia geral em certos casos. A falta de lideranças fortes e capazes faz com que a empresa se torne subserviente às ferramentas de controle de autoproteção. Isto é culpa de gestores fracos e desfocados.