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Será mesmo o calendário o grande vilão do futebol brasileiro?

Será mesmo o calendário o grande vilão do futebol brasileiro?

Já adianto que não. Talvez seja voz solitária neste assunto.

Estamos na metade da temporada e já se escutam torcedores, treinadores, jogadores e comentaristas esportivos reclamando do calendário do futebol brasileiro. Eles alegam que o campeonato é o mais competitivo do mundo por sua imprevisibilidade (mesmo que ela se dê pelo nivelamento por baixo da qualidade técnica das equipes) e que o desgaste físico é muito grande pelo excesso de partidas. Realmente, se olharmos o campeonato brasileiro desde 1971, há uma miríade de campeões: 17 clubes. Na copa do Brasil, o número é semelhante a 16. Assim, praticamente todos os clubes da primeira e segunda divisões do campeonato brasileiro já foram campeões nacionais, e poucas vezes temos uma repetição de campeões no mesmo torneio, o que causa a falsa impressão de que persiste um equilíbrio técnico entre as equipes.

Este equilíbrio pode ter sido verdadeiro no passado, quando todos os clubes eram endividados e mal administrados – geralmente em função de um presidente caricatural. Atualmente, Flamengo e Palmeiras se destacam dos demais em termos econômicos e de plantel porque têm sido competentes na administração, por isso alternam sucesso nos principais torneios do continente. Ambos são financeiramente sólidos e conseguem contratar e manter os principais jogadores do país e do continente com altos salários e projetos de presente e futuro que atraem jogadores de elite. Mas, como sempre acontece, ao final de cada temporada temos sempre um vencedor – ou alguns poucos vencedores, se considerarmos os demais campeonatos brasileiros e continentais. A justificativa pela derrota é sempre a mesma: o calendário. Mesmo quando na partida final de um campeonato um jogador perde pênalti ou gol diante do goleiro, ou até mesmo quando o goleiro leva um frango, o calendário é sempre o maior vilão.

Nada mais comum e batido do que ouvir técnicos reclamando da sequência de jogos dos times ao participarem das principais competições que envolvem os times brasileiros.

A surpresa de Jürgen Klopp, treinador do Liverpool, ao descobrir que seu adversário na final do Mundial de Clubes de 2019 já tinha jogado mais de 72 partidas na temporada, se tornou um marco dessa discussão. O time em questão era o Flamengo que, mesmo com toda essa carga de pelejas disputadas, foi campeão Brasileiro e da Libertadores com um jogo duríssimo na final do mundial contra o então melhor time do mundo, treinado por Klopp. Célebre também foram as reclamações de Abel Ferreira em 2020, quando seu Palmeiras ficou em quarto lugar no mesmo torneio, tendo perdido a semifinal e a disputa do terceiro lugar para o Tigres do México e o Al Ahly da Arábia Saudita, respectivamente. O treinador elegeu o desgaste como principal culpado de resultados tão ruins e destilou as suas já famosas e exaltadas críticas.

Se um time brasileiro passar por todas as competições e alcançar as fases finais de cada uma delas, jogará mais de 70 jogos em 10 ou 11 meses, a depender do período de pré-temporada e das férias dos jogadores, o que dá uma média de menos de duas partidas por semana. O Machester City, por exemplo, jogou 69 partidas oficiais na temporada 2022/2023), já o Real Madrid jogou por volta de 61 partidas oficiais nesta mesma temporada. Fato é: no Brasil se jogam mais partidas que em outras ligas sul-americanas e europeias. Mas o que isso quer dizer? Que há cada vez mais a necessidade de planejamento bem-feito. A nova temporada se inicia no ano anterior, antes mesmo de terminar a atual.

Provoco o leitor com a seguinte pergunta: o calendário é mesmo o principal vilão do futebol brasileiro? Seria ele o principal culpado por derrotas, como insistem os treinadores e dirigentes? É ele quem faz os times brasileiros sucumbirem aos times europeus? Ou tudo isso é bengala dos treinadores e dos dirigentes para justificar um planejamento mal feito para a temporada?

Falta de tempo para treinar ou de recursos para contratar? O que é pior?

Tendo a discordar daqueles que culpam o calendário. E, para isso, os convido a algumas reflexões. A primeira delas: futebol se tornou um grande negócio, como outro qualquer, em que altas somas de dinheiro são fortemente injetadas em troca de resultados esportivos e retornos financeiros. Envolve paixão, é bem verdade, disputas nos bastidores e ações ocultas do “Sobrenatural de Almeida”, mas ainda assim é um negócio que demanda cifras milionárias para se montar equipes competitivas. Em artigo anterior, já escrevi que planejamento leva a vitórias, e como qualquer empresa de grande porte, planejar o ano que entra e os 5 anos futuros é a chave do sucesso. Times mais qualificados tecnicamente e com elencos bem dimensionados se distanciam dos demais, mas se não houver estabilidade financeira e planejamento adequado sucumbirão no ano seguinte e não se tornarão equipes sustentavelmente competitivas. É o caso do Corinthians e do Atlético Mineiro, que privilegiaram a competitividade esportiva em sacrifício da estabilidade financeira. Por isso, vivem de surpresas ocasionais. Porém, este efeito surpresa se tornará cada vez mais raro no futebol, como já é raro em outros esportes.

Está cada vez mais claro que os melhores elencos entram como favoritos, se destacam e abocanham as maiores verbas de patrocínio e direitos de imagem. A dinâmica gera um círculo virtuoso: quanto mais o time vence, maior fica sua torcida, vende mais artigos esportivos e cresce o número de sócio-torcedores, gerando mais renda para o clube, além das chamadas verbas de televisão. Vejamos a seguinte lógica: o Flamengo tem aproximadamente 45 milhões de torcedores, se somente 5% dos torcedores se inscreverem como sócio-torcedores, teremos 2,5 milhões de sócios pagantes. O programa mais barato de sócio-torcedor custa R$ 50,00, que multiplicado por 2,5 milhões de torcedores membros dá R$ 125 milhões por mês, que multiplicado por 12 meses é igual a R$ 1,5 bilhão de reais anuais. Ou seja, somente com o sócio-torcedor o flamengo já alcança cifras mundialmente significativas. Isto aumenta exponencialmente a capacidade de investimento do clube no seu time de futebol. Acrescente-se a isso a venda de transmissão das partidas, de camisas, bilheteria e a venda de jogadores para a Europa. Aqui dorme a principal vantagem do calendário extenso do futebol brasileiro.

O modelo de negócio do futebol brasileiro tem como premissa a enorme capacidade de formação de jovens jogadores e a sua venda para os clubes europeus. Esta venda atualmente depende dos agentes internacionais que intermedeiam estas transações milionárias, em função de suas relações com os clubes europeus. O clube brasileiro fica então à mercê destes agentes que escolhem as melhores oportunidades de negócio, já que os clubes europeus têm orçamento finito e devem respeitar o fair play financeiro em cada temporada. Trazendo este exemplo para o mundo empresarial, imaginemos a Vale, maior exportadora brasileira de minério de ferro, precisando de agentes intermediários fora da empresa para atingir seu orçamento. Não é assim que funciona no mundo empresarial. A Vale tem agentes terceirizados, os chamados traders, mas estes representam fatia bem menor na gestão de suas receitas.

Desse modo, é preciso que os clubes dêem visibilidade aos jovens jogadores.  E esta visibilidade só acontece se estes jovem jogadores estiverem em campo, mesmo que  ocasionalmente, no time principal.  Portanto, para gerar caixa, obter visibilidade para patrocinadores, incentivar seus adeptos a se inscreverem em um programa de sócio torcedor, um time precisa jogar. Disputar a maior quantidade de campeonatos, se classificar para torneios internacionais e até mesmo, se possível, excursionar por outros países. Faz algum sentido então ver dirigentes clamando por menos jogos? Nenhum empreendedor reclamaria de ter muitos clientes para atender. Buscaria, sim, aumentar a sua empresa, seus times de venda, para poder atender cada vez mais clientes. Por que os times de futebol reclamam ao invés de se estruturarem?

Esse não é o único ponto. Como uma fatia ainda generosa das receitas dos clubes advém da venda de jogadores as categorias de base precisam ser aprimoradas e desenvolvidas. As jovens pérolas dos times precisam ter convivência com esse ambiente de alta competição e enfrentar adversários de nível superior aos jogos da base. Uma das grandes vantagens de um centro de treinamento bem equipado e moderno é permitir a convivência com os jogadores profissionais e com isso facilitar a ambientação e a educação dos jovens. Sem falar no aspecto social de os clubes investirem nas bases e tirarem da miséria nossos jovens, e por que não dizer crianças, que muitas vezes trocam sua cidade natal, deixam seus pais e ainda com pouca idade se jogam nos grandes centros de futebol para terem ao menos duas refeições diárias e alguma oportunidade na vida, na qual seu talento ao menos poderá competir com os demais jogadores mais abonados.

Se forem reduzidos os números de jogos, como esses garotos vão ter espaço para aparecer? Justamente por isso, times europeus compram garotos com pouca ou quase nenhuma passagem pelo futebol profissional e depois os revendem por um preço várias vezes maior. Lá eles ganham espaço para jogar, se aprimorar e, por consequência, passam a ser mais caros. Muitas vezes nem conhecemos o jovem brasileiro que se mudou para o exterior sem nunca ter jogado num time profissional do Brasil.

Dessa forma, o calendário pode ajudar na formação destes jovens jogadores. Muitos criticam os estaduais, algo que é uma exclusividade de um país continental como o Brasil. Mas por que não utilizar esse torneio como uma pré-temporada? Por que não utilizar os times de base nessas competições, e guardar o time principal para as fases finais? Por que, ao invés de reclamar do calendário, os dirigentes não lutam contra cláusulas que obrigam as equipes a jogarem com seu plantel principal jogos esvaziados da fase classificatória dos estaduais?

O Brasil é um país formador de jogadores. Em 2022, nos mantivemos na ponta do ranking de países que mais exportam, bem à frente da França e da Argentina, respectivamente segundo e terceiro colocados da lista. Isso deveria ser mais um motivo para estimular nossos dirigentes a buscarem mais oportunidades para que suas equipes atuem. Esse é o ciclo que permite gerar riqueza para os clubes, que podem investir na base, na infraestrutura e na construção de elencos mais fartos, mesclados entre jovens e atletas mais experientes. Assim, todos poderiam ganhar.

A consciência precisa mudar em todo o ecossistema de futebol. Técnicos ranzinzas e desculpas pós-derrota nas coletivas sempre existirão. Mas elas não podem encobertar o fato que de nosso futebol perde a cada ano a competitividade porque nossos clubes estão cada vez mais atolados em dívida. E a falta de dinheiro não é a causa, pois tudo cresceu ultimamente: os direitos de transmissão, o valor das vendas dos jogadores e até o público nos estádios. Mas falta gestão para transformar recursos em avanços sólidos. Assim como o calendário farto é uma desculpa, a falta de dinheiro circulando também é. Do contrário, o que explica o fato de a Libertadores da América, um torneio que há poucos anos era especialidade dos nossos hermanos latinos, ter se tornado uma competição que, à exceção de um ou dois times argentinos, é amplamente dominado pelas equipes brasileiras? Profissionalizar a gestão não é mais uma escolha e sim questão de sobrevivência para a maioria das equipes nacionais. Não à toa, estamos há tanto tempo sem ganhar uma Copa do Mundo ou os nossos times têm encontrado cada vez mais dificuldade contra as “potências” do mundo árabe. Porque esse é um problema que permeia todas as esferas do futebol brasileiro. Certamente nosso calendário pode ser aperfeiçoado, mas de longe é o menor dos nossos problemas atuais.

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Maurício Ferro

O que o futebol, vinhos, direito, política e economia têm em comum? Muito mais do que você imagina. E ao contrário do que prega o ditado popular, podem e devem ser debatidos e analisados sim. Sejam bem-vindos ao site de Maurício Ferro, um canal para se criar e trocar pensamentos e opiniões. Maurício Ferro é advogado, formado pela PUC do Rio de Janeiro, com mestrado e especializações realizadas em universidades como a London School e University of London. Cursou OPM na Harvard Business School. Autor de trabalhos publicados nas áreas comercial e de mercado de capitais, e com atuação no Conselho de Administração de grandes empresas, fundamentou sua carreira jurídica e executiva com foco do Direito Empresarial. Mas sua paixão vai além do mundo corporativo. Flamenguista apaixonado, Mauricio conhece os meandros do mundo profissional do futebol e de outros esportes. É sócio em empresas inovadoras como a 2Blive, uma startup global focada em soluções tecnológicas para suprir a carência no ensino, especialmente em áreas de grande necessidade como a África. Investe ainda na empresa Flow Kana, sediada na California, e voltada para a produção científica da Canabis para diversos fins, como medicinal, produção de roupas ou uso recreativo. A todos esses ingredientes, adicione ainda um profundo conhecimento sobre vinhos e os caminhos deliciosos da enologia. Essa é a receita do que vocês encontrarão por aqui.

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