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Americanas: uma sequência de deslealdades

Americanas: uma sequência de deslealdades

“A LEALDADE É O BEM MAIS SAGRADO DO CORAÇÃO HUMANO.”

Sêneca

Notícias trazidas pela CPI do imbróglio das lojas Americanas afirmam que o atual presidente da empresa admitiu publicamente a existência de fraude contábil e que o rombo calculado em R$ 25 bilhões foi deliberadamente escondido nas demonstrações financeiras ao longo de vários anos. Afirma ainda que os antigos diretores são os únicos responsáveis pela fraude contábil e que esconderam as informações do conselho de administração da empresa. No mercado, a versão do desalinhamento de informações entre diretoria e conselho de administração soa estranha, pois comenta-se que os controladores sempre foram muito atuantes e que, não raramente, se envolviam diretamente na contratação dos executivos mais graduados de quem se exigia lealdade absoluta. Com o sentimento de traição, espera-se agora um contra-ataque dos antigos diretores que gerará uma batalha sangrenta quanto a culpabilidade da fraude.

O escândalo se iniciou com uma denúncia publica feito por antigo presidente da companhia, após meros 10 dias no cargo, que pegou a todos de assombro. Questiona-se até hoje se esta denúncia surpresa teria sido feita em interesse próprio, portanto em deslealdade à companhia, e que levou a empresa a beira da falência e milhares de pessoas ao desemprego.

O ponto focal da discussão jurídica aponta para a análise da responsabilização das condutas, mas do ponto de vista filosófico a lealdade estará em debate. Neste caso, vale analisar toda a cadeia de quebra de lealdade envolvida no episódio. O Conselho de Administração parece desleal à Diretoria que, por sua vez, parece ter agido em deslealdade ao mercado. Já o ex-presidente denunciante parece ter agido em deslealdade a companhia e as empresas de auditoria, bem, estas foram incompetentes mesmo. Por isso, surgem alguns questionamentos.  A lealdade é uma virtude? Há limites para a lealdade? A quem se deve ser leal?

De modo geral, é considerada uma virtude. Para Josiah Royce, filósofo americano, autor de “the Philosophy of Loyalty”, publicado em 1908, a lealdade é a virtude primária, “o centro de todas as virtudes e o dever central de todos os deveres”. Ele apresenta a lealdade como o princípio moral básico, do qual derivam todos os outros. Mas, frequentemente, nos vemos diante de encruzilhadas que conflitam a quem se deve ser leal. É um conceito ético e moral. Em sociedades muito mais complexas como as de hoje, nossas teias de relacionamentos são mais extensas. Somos ensinados a ser leais à família, mas também aos amigos, à empresa, à sociedade, a uma causa, e o mais importante ao Flamengo. É comum, portanto, que esses interesses entrem em choque.

O leal espera receber apenas a própria lealdade como retorno

A lealdade é uma via de mão dupla. Não se espera nada em troca a não ser a própria lealdade reversa. É a fórmula na qual se estabelece a confiança em qualquer relação: pessoal, profissional e social. É a capacidade de levar em consideração os outros de forma altruísta e de permanecer ao lado delas nos bons e maus momentos. Não se confunde com fidelidade, que remonta a uma obrigação, enquanto a lealdade está associada a uma conexão aos valores de cada indivíduo. Assim, nem todos os fiéis são leais, pois podem estar seguindo o que consideram obrigação e não seguindo seus valores individuais. Por isso, mais do que ser leal com os outros, a pessoa é leal consigo mesma, com seus valores e princípios. Daí porque a quebra da lealdade causa tanto sofrimento. Quando se devota uma vida a uma pessoa, família ou a uma empresa, com demonstrações de lealdade e sacrifício e esta lealdade não é correspondida nos momentos mais agudos a decepção é profunda, com cicatrizes irremediáveis.

Isto nos leva ao terreno das motivações e da pessoalidade. No campo das pessoas, ou seja, a quem se deve ser leal, o assunto se divide em duas categorias: ser leal a um ente abstrato, como por exemplo as empresas, ou uma causa; e ser leal a pessoas, ou conjunto de pessoas como os amigos, ou a família. No caso dos entes abstratos, ser leal não fará com que a empresa, ou a causa, lhe seja leal. Pelo contrário, as pessoas jurídicas são motivadas a fazer o que lhes interessa naquele momento específico e cobram ações concretas de lealdade dos seus executivos, mesmo que isso o leve a sacrifícios pessoais de grande impacto familiar, social e reputacional. Se você é um excelente profissional, com dedicação exclusiva por longos períodos, não significa que seu emprego está garantido se houver o desejo pelo seu cargo. O executivo de uma empresa que denuncia seus crimes contábeis, mesmo que com boas intenções, jamais será visto como leal à empresa. Aos entes abstratos, o conceito que predomina está mais ligado a fidelidade, já que a relação está estabelecida em obrigações recíprocas contratuais. Não interessa o que dizem as políticas internas, princípios e regulamentos das empresas, ou até mesmo o clichê de que são as pessoas que fazem as empresas. No capitalismo de massas as empresas são leais ao lucro e aos desejos dos seus controladores. Portanto, ao ser leal a uma empresa, assegure-se de estar preparado para a traição que ela eventualmente lhe imporá.

Já nas relações pessoais não há regra para resolver os conflitos. Estes são administrados pelos valores intrínsecos de cada um. Se a relação familiar é solida, tende-se a ter uma lealdade natural com todos os seus integrantes. Se as amizades são verdadeiras, com valores comuns, floresce naturalmente a lealdade, mas se as relações se baseiam em interesses a lealdade será claudicante. Portanto, na eventual escolha entre a quem ser leal predomina a relação pessoal ao ente abstrato. Optar por ser leal a uma empresa em detrimento de sua família é antinatural.

Resta então abordar a motivação da lealdade. Aqui adentramos numa seara mais objetiva e complexa. O criminoso desleal ao bando é sempre considerado desleal porque age em interesse próprio e não por um fim moral. Mas, o executivo que trai a empresa, visando uma causa nobre como a denuncia de crimes ambientais, tende a ser aceito pela sociedade – não pela empresa denunciada – dado o fim altruísta da sua conduta.

O dito popular diz que lealdade não tem preço. De fato, se assemelha ao respeito, dado não ser possível comprá-los, mas tão somente conquistá-los. Mas há sim um preço da lealdade. Este irá lhe custar relacionamentos, amizades, ou promoção profissional, pois não se consegue ser leal a tudo e a todos ao mesmo tempo. O limite da lealdade está atrelado a nobreza da sua motivação.

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Maurício Ferro

O que o futebol, vinhos, direito, política e economia têm em comum? Muito mais do que você imagina. E ao contrário do que prega o ditado popular, podem e devem ser debatidos e analisados sim. Sejam bem-vindos ao site de Maurício Ferro, um canal para se criar e trocar pensamentos e opiniões. Maurício Ferro é advogado, formado pela PUC do Rio de Janeiro, com mestrado e especializações realizadas em universidades como a London School e University of London. Cursou OPM na Harvard Business School. Autor de trabalhos publicados nas áreas comercial e de mercado de capitais, e com atuação no Conselho de Administração de grandes empresas, fundamentou sua carreira jurídica e executiva com foco do Direito Empresarial. Mas sua paixão vai além do mundo corporativo. Flamenguista apaixonado, Mauricio conhece os meandros do mundo profissional do futebol e de outros esportes. É sócio em empresas inovadoras como a 2Blive, uma startup global focada em soluções tecnológicas para suprir a carência no ensino, especialmente em áreas de grande necessidade como a África. Investe ainda na empresa Flow Kana, sediada na California, e voltada para a produção científica da Canabis para diversos fins, como medicinal, produção de roupas ou uso recreativo. A todos esses ingredientes, adicione ainda um profundo conhecimento sobre vinhos e os caminhos deliciosos da enologia. Essa é a receita do que vocês encontrarão por aqui.

4 Comments

  • Mauricio,
    Muito bom seu texto sobre essa situação nebulosa em que se encontra a Americanas.
    Um novo diretor de uma empresa do porte da Americanas, que em 10 dias descobre a existência de fraude foi colocado no cargo como bode expiatório? É simplesmente bizarro. Não há reuniões mensais para controlar balancetes? Como o trio de proprietários deixou a situação chegar a esse ponto?
    Excesso de confiança na LEALDADE de sua diretoria, diretoria essa que traiu a cúpula durante anos. E aí se mesclam e se completam, a LEALDADE e a FIDELIDADE. A meu ver, trata-se de uma trama onde muitos estão envolvidos com o Deus Dinheiro.
    Só não concordo com você quando diz que ” não se consegue ser leal a tudo e a todos ao mesmo tempo”. Acho que é uma questão de postura e de princípios.

  • Bastante interessante este artigo! Faz pensar… Muitos ângulos…

  • Parabéns pelo artigo!!

  • Muito esclarecedor!

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